O Plano Diretor e o “bom projeto”
Sobre Dispersão Urbana. Org. Nestor Goulart Reis. São Paulo: Via das Artes, 2009.
INTRODUÇÃO:
O presente trabalho é resultado de estudos e discussões dirigidas pelo Prof. Nestor Goulart Reis ao longo do ano de 2007, no LAP – Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Grande parte dos debates teve como foco o problema do planejamento urbano e da qualidade dos projetos que poderiam ser elaborados a partir da legislação aplicável.
É importante registrar, inicialmente, que, para aqueles que trabalham com o Direito, é sempre grande a dificuldade em perceber e lidar com questões meta-jurídicas. A insistência do Prof. Nestor Goulart Reis em criticar a legislação aplicável, defendendo o que lhe parecia ser “certo” e “errado”, confrontou-se, inicialmente, com a lógica do operador do direito, acostumado ao “válido” e “inválido”. Pouco importaria se, do ponto de vista arquitetônico, paisagístico e urbanístico, determinada obra fosse boa, certa ou errada. Encontrando respaldo na legislação aplicável – e, assim, resultando válida –, dita obra, sob o ponto de vista jurídico, seria satisfatória.
Evidente, o urbanismo e, bem assim, o Direito Urbanístico não podem ser pensados assim. No âmbito de nossas discussões, passamos, então, a analisar a legislação relativa à matéria, buscando sempre viabilizar o “bom projeto”, i.e., aquele que, além de válido, é positivo sob o ponto de vista arquitetônico, paisagístico e urbanístico.
O trabalho culminou com palestra proferida no 2º Encontro Internacional sobre Urbanização Dispersa e Mudanças no Tecido Urbano, realizado entre os dias 12 a 14 de novembro de 2007, na Universidade de São Paulo. Abaixo, apresentamos uma síntese do que expusemos no referido Encontro, buscando, à luz da Constituição Federal e da legislação aplicável, defender que o “bom projeto” deve ser resguardado pelo universo das normas jurídicas e, em especial, pelo plano diretor.
- PLANIFICAÇÃO E PLANOS DIRETORES:
Primeiramente, é importante considerar que a planificação (fenômeno que acarreta na elaboração de planos urbanísticos) não se confunde, por óbvio, com os planos urbanísticos, dos quais os planos diretores municipais são espécies. Os planos, na realidade, são o resultado da planificação, do planejamento urbano e, portanto, sintetizam e juridicizam todas as propostas técnicas que decorrem do planejamento. Desse modo, o vocábulo planificação deve significar a idéia de procedimento, de ação, que acaba resultando na elaboração de um documento concreto, o plano urbanístico[1].
Dentro de Estados Sociais e Democráticos de Direito, os planos assumem especial importância, notadamente no apoio ao desenvolvimento econômico e social. Isso porque a crescente intervenção do Estado na economia e na esfera de direitos do particular só será legítima se adequada a um determinado planejamento, consubstanciado, como se disse, em planos. Confira-se, a esse respeito, o que diz Fernando Alves Correia: “O plano é, assim, um sinal evidente da transformação verificada no modo de ser das funções estaduais, no seguimento da passagem do Estado de Direito Liberal para o Estado de Direito Social. É um instrumento utilizado pela Administração para programar racionalmente a sua intervenção nos mecanismos sociais”[2].
Não é por outra razão que a Constituição Federal de 1988, em diversas passagens, faz referência à elaboração de planos pelo Poder Público, tais como os planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, os planos plurianuais e, em matéria urbanística, os planos diretores. A adoção pelo constituinte brasileiro da planificação como forma de atuação do Poder Público significa dizer que o processo de planejamento, inclusive o urbano, não depende da mera vontade dos governantes, sendo a sua adoção, ao contrário, decorrência direta da Constituição Federal.
Nos importa, em especial, tratar dos planos diretores.
2.1. Natureza dos planos diretores:
Não há consenso na doutrina a respeito da natureza jurídica do plano diretor. Há autores, como Victor Carvalho Pinto que, sem negar o fato de ser o plano diretor aprovado por lei municipal, lhe atribui caráter técnico, norteador do desenvolvimento e da urbanização do território do Município[3]. José Afonso da Silva, por seu turno, assinala que as diretrizes do plano diretor são incorporadas ao texto da lei que o aprova, uma vez que no Brasil ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer nada, senão em virtude de lei[4].
Victor Carvalho Pinto, ao abordar o tema, ressalta que o plano diretor não pode ser compreendido como uma lei propriamente dita. Faltam-lhe, nas suas palavras, a abstração e generalidade inerentes às leis: “a lei deve ser genérica, tratando igualmente todas as pessoas. As regras estabelecidas pelo plano diretor não são gerais, mas específicas para cada zona em que divide a cidade”[5].
Muito embora a aprovação do plano diretor, por força da Constituição Federal, incumba ao poder legislativo municipal, não há, no texto constitucional, nenhuma menção ao instrumento jurídico por meio do qual a aprovação deverá ocorrer, o que só ocorre, na realidade, com a edição do Estatuto da Cidade, que em seu art. 40 estabelece ser a lei municipal o instrumento adequado para a aprovação do plano diretor (Lei nº 10.257, de 01.07.2001). Em grossa comparação, Victor Carvalho Pinto defende que o ato legislativo de aprovação de um plano diretor é semelhante àquele ato administrativo que autoriza a expedição de uma licença. Um projeto de uma edificação não se confunde com a licença, mas é por ela aprovado. Formalmente, portanto, o plano diretor é apenas um anexo à lei municipal que o tenha aprovado, podendo, assim, ao menos em tese, ser impugnado pelos mesmos meios que são utilizados para a impugnação de atos administrativos em geral, como o mandado de segurança e a ação civil pública[6].
- M. Sandulli, autor italiano, também identifica os planos diretores com os atos administrativos. No seu entender, estes planos contêm uma disciplina diferenciada para cada parte do território urbano, tomando em consideração os aspectos e os interesses próprios de um espaço singular, não se diferenciando, pois, de outros atos administrativos destinados a impor ônus diversos sobre determinada propriedade imóvel urbana[7].
Ainda que seja discutível a possibilidade de comparação entre o plano diretor e o ato administrativo, o que não se pode negar é que o plano diretor reúne inúmeros elementos técnicos que norteiam o desenvolvimento da urbe. Victor Carvalho Pinto bem elucida a natureza técnica dos planos diretores:
“Todo o conteúdo plano diretor (sic), como o traçado do sistema viário, a localização das praças e a definição de índices urbanísticos, é de natureza técnica. As regras de parcelamento, uso e ocupação do solo constantes do plano diretor não são projetos, mas dizem respeito à elaboração de projetos. Definem parâmetros para a posterior elaboração dos projetos de obras públicas, loteamentos e edificações. A definição dos usos e dos índices urbanísticos, como coeficientes de aproveitamento, taxas de ocupação, alturas de prédios, recuos frontais, laterais e de fundos, áreas e testadas mínimas de lotes e largura de ruas também constituem matéria técnica, por exigirem conhecimentos específicos para que possam ser elaboradas e até compreendidas. O plano diretor deve ser considerado, portanto, um documento técnico de urbanismo, que só pode ser elaborado por profissionais legalmente habilitados”[8].
Não há como se refutar os argumentos apresentados por Victor Carvalho Pinto concernentes ao plano diretor. Tal documento é, de fato, um documento técnico, elaborado por arquitetos e urbanistas. Não temos como admitir, entretanto, que seja o plano diretor unicamente um documento técnico. Aliás, o mesmo tipo de questionamento seria possível em relação às normas ambientais, edilícias ou de vigilância sanitária, por exemplo, nas quais a absoluta prevalência de aspectos técnicos não as desnatura como normas jurídicas.
Com efeito, a Constituição Federal estabeleceu uma estrutura baseada em instrumentos legais no que diz respeito ao planejamento urbano. Primeiro, previu a edição do Estatuto da Cidade e, em segundo lugar, alçou o plano diretor ao papel de instrumento básico da política de desenvolvimento do Município. Além disso, todos aqueles instrumentos de que trata o Estatuto da Cidade, alguns deles de raízes constitucionais, como é o caso do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, dependem da aprovação de lei municipal específica, editada com base no plano diretor para serem implementados. De mais a mais, inúmeros municípios, como é o caso de São Paulo, identificam os seus respectivos planos diretores a leis, que deverão ser aprovadas, em geral, como leis ordinárias. Outros Municípios, como é o caso de Campinas, exigem, inclusive, quorum qualificado para a aprovação do plano diretor, que deverá, naquele Município, corresponder ao de uma lei complementar.
Não haveria, pois, como se negar o caráter normativo do plano diretor. Até mesmo porque, como lembra José Afonso da Silva, a aprovação do plano diretor por lei “é uma exigência do princípio da legalidade no sistema brasileiro, que não admite que se crie obrigação e se imponha constrangimento senão em virtude de lei”. Termina o autor por concluir que “os elementos do plano ficam fazendo parte integrante dessa lei, transformando-se, pois, em normas jurídicas”[9].
O caráter normativo do plano diretor também é afirmado por Fernando Alves Correia, autor português, que, fazendo comentários sobre a natureza dos planos urbanísticos portugueses, afirma que ditos planos, em sua parte “regulamentar”, definem “o conteúdo do direito de propriedade do solo, contendo, deste modo, preceitos jurídicos criados ex novo, que não constam de quaisquer instrumentos normativos anteriores”[10]. Em outras palavras, na medida em que os planos diretores, ou planos urbanísticos em geral, conformam o direito de propriedade, criando verdadeiras normas jurídicas, não haveria como se negar o seu caráter legal.
É bastante difícil, como se verifica, definir o plano diretor como sendo apenas um instrumento técnico ou, então, legal. Há elementos, em ambas as correntes, que não podem ser rejeitados, uma vez que expressam corretamente, cada um a seu modo, aspectos particulares dos planos diretores. Preferimos ficar, assim, com Hely Lopes Meirelles, para quem o plano diretor “é o complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante dos Municípios, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo”[11]. Em síntese, portanto, trata-se de verdadeiro instrumento técnico-legal, razão pela qual se justifica toda a organização espacial de determinado Municípios e, por outro lado, como instrumento legislativo, atribui maior densidade normativa ao princípio da função social da propriedade.
A opção por definir o plano diretor como um instrumento técnico-legal é, aliás, a que nos parece melhor se adequar ao texto constitucional. De fato, por um lado, como instrumento legal, atribui-se ao plano diretor o caráter cogente que o princípio da legalidade exige, obrigando a todos aqueles que habitam ou utilizam as cidades. Por outro lado, como verdadeiros planos técnicos que são, aos planos diretores é assegurado certa hierarquia com relação às demais leis municipais que versam sobre urbanismo, permitindo que arquitetos, urbanistas, engenheiros operem uma legislação que, ao final, está orientada ao exercício de suas profissões.
2.2. Supremacia dos planos diretores:
A necessidade de que o planejamento urbano deva ser orientado pelo plano diretor é estabelecida pela Constituição Federal, como se verifica de seu art. 182[12]. O mesmo conceito é trazido, por exemplo, pelos arts. 143 e 150 da Lei Orgânica do Município de São Paulo, esse último expresso ao estabelecer que o “Plano Diretor é o instrumento global e estratégico da política de desenvolvimento urbano e de orientação de todos os agentes públicos e privados que atuam na cidade”.
Em síntese, portanto, o planejamento urbano deve estar orientado, por força do que dispõe a Constituição Federal, pelas disposições do plano diretor aplicável. Toda e qualquer intervenção urbana realizada em dissonância com o respectivo plano, além de ilegal, acaba por mostrar-se inconstitucional, contrária às regras de planejamento estabelecidas pela Lei Maior. Como bem ressalta Hely Lopes Meirelles a esse respeito, o plano diretor, “na fixação dos objetivos e na orientação do desenvolvimento do Município, é a lei suprema e geral que estabelece as prioridades nas realizações do governo local, conduz e ordena o crescimento da cidade, disciplina e controla as atividades urbanas em benefício do bem-estar social”[13].
Referido entendimento, e não poderia ser diferente, já foi ratificado pelo Tribunal de Justiça do Estado São Paulo em reiteradas oportunidades, duas delas bastante recentes e pertinentes à discussão:
“A norma impugnada, ao autorizar a prestação de determinados serviços em uma única via pública, interfere diretamente no zoneamento e planejamento urbano pelo que deveria obedecer às diretrizes de um plano diretor (…). Não se concebe, nesta matéria, a edição de norma avulsa, dissociada de um planejamento global” (ADIn nº 130.132-0/6-00, Órgão Especial do TJSP – Relator Desembargador Debatin Cardoso – Julgamento realizado em 26.09.2007).
“Tampouco se olvide que não se promove o ordenamento territorial de um município sem o devido planejamento. E este se perfaz através do plano diretor, ou plano diretor de desenvolvimento integrado, consistente no complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do Município, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo, desejado pela comunidade. (…). Quaisquer alterações pontuais, como nesta hipótese, devem ser estabelecidas por meio técnicos, para que não afetem ou prejudiquem todo o planejamento já feito pelo plano diretor” (ADIn n167 129.973-0/0-00, Órgão Especial do TJSP – Relator Desembargador Jarbas Mazzoni – Julgamento realizado em 23.05.2007).
É importante registrar que o planejamento urbano, dentre outras razões, visa assegurar que o desenvolvimento do Município não ocorra segundo a vontade de cada um dos administradores municipais que assumem o controle do Poder Executivo. Em outras palavras, o planejamento urbano, do qual os planos diretores são corolários, deve assegurar aos agentes públicos e privados que atuam no Município segurança jurídica, a qual, por exemplo, se mostra imprescindível para o desenvolvimento de projetos de urbanização.
O princípio da segurança jurídica decorre da própria estrutura do Estado Social e Democrático de Direito e, portanto, da noção de planejamento. Qualquer medida contrária ao plano diretor, a par da flagrante ilegalidade, acaba por violar o referido princípio, cujas raízes são constitucionais. A esse respeito, veja-se o que diz Celso Antônio Bandeira de Mello: “É a insopitável necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estável, ou relativamente estável, o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o futuro; é ela, pois, que enseja projetar e iniciar, conseqüentemente – e não aleatoriamente, ao mero sabor do acaso –, comportamentos cujos frutos são esperáveis a médio e longo prazo”[14].
Tais questões, vale observar, estão intrinsecamente ligadas ao princípio da reserva do plano, decorrente, antes da redação dada ao art. 182, parágrafo segundo da Constituição Federal, e, em segundo lugar, da lei federal de parcelamento do solo para fins urbanos, Lei nº 6.766, de 19.12.1979.
Nas palavras do autor português Fernando Alves Correia, “significa este princípio que só pode construir-se num terreno quando o plano – que existe já em quase todos os municípios do nosso pais – lhe atribuir vocação edificativa ou o classificar e qualificar como solo urbano”[15]. José Afonso da Silva, trazendo à colação lição de Pedro Escribano Collado, afirma o seguinte: “o direito do proprietário está submetido a um pressuposto de fato, à qualificação urbanística dos terrenos, cuja fixação é da competência da Administração, de natureza variável, de acordo com as necessidades do desenvolvimento urbanístico das cidades, cuja apreciação corresponde também à Administração”[16].
O princípio da reserva do plano urbanístico decorre, pois, da própria exigência de elaboração do plano diretor para a definição da função social da propriedade urbana, como definido pela Constituição Federal. Mais do que isso, referido princípio ilustra a posição hierarquicamente superior que os planos diretores devem ocupar no planejamento municipal, cabendo a eles, segundo expõe a doutrina a respeito da matéria, qualificar o solo como urbanizável[17].
Resta claro, portanto, que, em matéria de planejamento urbano, o plano diretor, além de ocupar posição central, é – e deve ser – hierarquicamente superior às demais normas municipais.
2.3. O dinamismo no planejamento urbano:
Se, com razão, concluímos que os planos diretores ocupam importante papel no planejamento urbano, não com menos propriedade somos levados a afirmar que não podem tais instrumentos ser exaustivos ao tratar do desenvolvimento da urbe. “O Plano Diretor não é um projeto executivo de obras e serviços públicos, mas sim um instrumento norteador dos futuros empreendimentos da Prefeitura, para o racional e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade”[18].
Em outras palavras, não se pode admitir que o plano diretor seja estático e exaustivo. Pelo contrário. Considerando que sua finalidade precípua é o atendimento das funções essenciais das cidades – i.e., habitação, lazer, trabalho e transporte[19] –, o plano diretor deve ser um instrumento dinâmico e evolutivo, procurando sempre adequar-se às necessidades da coletividade e a um urbanismo adequado.
Fernando Alves Correia, ao tratar dos planos urbanísticos ou territoriais, identifica quatro funções a eles inerentes: a identificação da realidade ou da situação existente, a conformação do território, a conformação do direito de propriedade do solo e, por fim, a gestão do território[20].
Quanto à primeira função, os planos urbanísticos se prestam a realizar um levantamento da situação existente, identificando os usos e ocupações já implantados, bem como as necessidades daqueles que habitam o território. A partir da identificação de tais elementos, é que se pode elaborar um plano urbanístico mais vinculado à realidade. Caso contrário, estar-se-ia diante de um plano urbanístico concebido como “mera expressão das idéias e dos desejos do seu autor ou autores”[21].
A conformação do território é a segunda função dos planos urbanísticos. Representa tal função a necessidade de que os planos influenciem e organizem o território como um todo, adequando as parcelas do espaço urbano umas às outras, constituindo um verdadeiro tecido urbano. Tal função implica, ainda, na definição das regras e dos princípios relativos à organização e à racionalização da ocupação e utilização do espaço. Ou seja, a opção por esta ou aquela premissa para o crescimento da cidade, a escolha por determinado modelo de urbanização etc.
A terceira função dos planos urbanísticos é a conformação do direito de propriedade do solo. É por meio dela que serão estabelecidas “prescrições que vão tocar a própria essência do direito de propriedade, através da classificação do uso e destino do solo, da divisão do território em zonas e da definição dos parâmetros a que deve obedecer a ocupação, uso e transformação de cada uma delas”[22].
A quarta e última função é relativa à gestão do território, sendo de grande relevância para o debate proposto no presente trabalho. Após se dedicar ao seu conteúdo, os planos urbanísticos devem conter mecanismos de execução e monitoramento. É nesse estágio que os responsáveis pela elaboração dos planos urbanísticos deverão se ater à implementação das medidas previstas no plano urbanístico, bem como dos mecanismos de monitoramento, seja por parte do Poder Público ou pela população.
O Estatuto da Cidade tratou expressamente dos mecanismos de controle da execução dos planos urbanísticos, prevendo, além da sua revisão periódica, a necessidade de que os planos diretores contenham, no mínimo, sistemas de controle e acompanhamento (art. 42, inciso III, do Estatuto da Cidade[23]).
Como se vê, os planos diretores, não obstante encontrarem posição relevante no planejamento urbano, devem, obrigatoriamente, ser instrumentos dinâmicos, permitindo que o “bom projeto” não encontre obstáculos em emaranhados de dispositivos legais que acabem por inviabilizar o desenvolvimento de um projeto que, não obstante seja bom – ou “certo” –, acabe por se mostrar ilegal – ou “inválido”. É novamente de Hely Lopes Meirelles de quem nos socorremos:
“Por isso [o plano diretor] não exige plantas, memorais e especificações detalhadas, pedindo apenas indicações precisas do que a Administração municipal pretende realizar, com a locação aproximada e as características estruturais ou operacionais que permitam, nas épocas próprias, a elaboração dos projetos executivos com a estimativa dos custos das respectivas obras, serviços ou atividades que vão compor os empreendimentos anteriormente planejados, sejam construções isoladas, sejam planos setoriais de urbanização ou de reurbanização, sejam sistemas viários, redes de água e esgoto, ou qualquer outro equipamento público ou de interesse social”[24].
O dinamismo dos planos diretores certamente permitirá a elaboração de “bons projetos”. Sem estar verdadeiramente engessado a normas que impõem gabaritos, tamanhos de lotes, recuos e uma outra infinidade de aspectos técnicos, aqueles que desejam participar do planejamento urbano poderão, no curso da execução de projetos específicos, discutir quais requisitos melhor atendem à coletividade.
De certa maneira, tal estrutura legislativa foi adotada no Município de São Paulo, em que, a par do plano diretor – permita-se, exaustivo em diversas matérias sobre as quais poderia não ter se manifestado –, previu-se a criação de planos regionais, elaborados por cada uma das subprefeituras, além dos chamados planos de bairro, estes últimos, até a presente data, ainda não elaborados. De todo modo, não se percebe da legislação paulistana a possibilidade de que projetos específicos, como grandes projetos de loteamento e de reurbanização, sejam discutidos caso a caso, procurando sempre o “bom projeto”. Ao contrário, empreendedores, arquitetos, urbanistas e engenheiros encontram-se, ainda, conformados por referidas leis – as quais, lembre-se, dependem de novas leis para serem alteradas ou, então, para que se criem exceções a elas.
A legislação portuguesa andou no mesmo sentido. Fernando Alves Correia, discorrendo sobre a reforma do direito urbanístico português, lembra que “os planos de urbanização devem desenvolver e especificar a disciplina urbanística das zonas destinadas à edificação pelos PDM [plano diretor municipal] e os planos de pormenor conter a disciplina detalhada dos planos de urbanização em relação a áreas mais restritas”[25].
- CONCLUSÃO:
Como se vê, os planos urbanísticos são essenciais ao planejamento urbano. Primeiro porque personificam o próprio Estado Social e Democrático de Direito, impedindo a atuação estatal de maneira arbitrária, e, em segundo lugar, porque, como instrumentos legais, conformam o exercício dos direitos de propriedade e de construir pelos particulares, obrigando que eles sejam exercidos em conformidade com o plano então editado. Representam, em outras palavras, a própria legalidade.
Não obstante, o plano diretor é também um instrumento técnico, devendo ser manejado por arquitetos, urbanistas e engenheiros que buscam viabilizar a implantação de um “bom projeto”. Assim, não se pode admitir que os planos diretores sejam instrumentos estáticos ou exaustivos ao tratar do planejamento urbano. Devem, ao contrário, funcionar como norte para a elaboração de projetos específicos, os quais deverão, aí sim, contar com regulamento exaustivo. Acreditamos que tal estrutura propicia a elaboração do “bom projeto”.
- BIBLIOGRAFIA:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
CORREIA, Fernando Alves. Manual de Direito do Urbanismo – vol. 1. 3ª ed. Coimbra, Portugal: Almedina, 2006.
__________. As Grandes Linhas da Recente Reforma do Direito do Urbanismo Português. Coimbra, Portugal: Almedina, 2000.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. 9ª ed. Atual. Eurico de Andrade Azevedo, Adilson Abreu Dallari e Daniela Campos Libório di Sarno. São Paulo: Malheiros, 2005.
PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico – Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo: RT, 2005.
SARNO, Daniela Campos Libório di. Elementos de Direito Urbanístico. Barueri, SP: Manole, 2004.
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
[1] José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 89; e Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, p. 314.
[2] Manual de Direito do Urbanismo, p. 314.
[3] Direito Urbanístico, p. 257.
[4] Direito Urbanístico Brasileiro, p. 143.
[5] Direito Urbanístico, p. 257.
[6] Ibidem, p. 255.
[7] Apud, Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, p. 503.
[8] Ibidem, p. 254.
[9] Direito Urbanístico Brasileiro, p. 143.
[10] Manual de Direito do Urbanismo, p. 529-530.
[11] Direito de Construir, p114.
[12] “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.
[13] Direito de Construir, p. 115.
[14] Curso de Direito Administrativo, p. 119
[15] Manual de Direito do Urbanismo, p. 714.
[16] Direito Urbanístico Brasileiro, p. 79.
[17] Muito embora defendamos a posição hierarquicamente superior dos planos diretores, discordamos da posição da doutrina de que compete a tais planos qualificar o solo como edificável. O direito de construir, segundo defendemos, é inerente ao direito de propriedade, sendo uma decorrência direta das funções de usar, gozar e fruir.
[18] Hely Lopes Meirelles, Direito de Construir, p. 115.
[19] As referidas funções foram enunciadas pela Carta de Atenas elaborada a partir das conclusões do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, realizado em Atenas no início da década de 1930. Daniela Campos Libório di Sarno vai além e propõe que a proteção ao meio ambiente e à qualidade de vida também passem a ser funções vitais de uma cidade e, assim, passíveis de proteção: “As funções da cidade foram consagradas, durante o século XX, delimitando, no urbanismo e no Direito Urbanístico, seus objetos de preocupação (lazer, moradia, circulação e trabalho) e a área de atuação (cidade). Entretanto, as transformações sociais ocorridas durante este último século fizeram evoluir este enfoque. Houve acréscimo de valores, além da inserção de novos elementos na coordenação de espaços habitáveis. Meio ambiente e qualidade de vida, hoje, estão necessariamente no rol das preocupações do Poder Público e da sociedade” (in Elementos de Direito Urbanístico, p. 87).
[20] Manual de Direito do Urbanismo, p. 328-333.
[21] Ibidem, p. 328.
[22] Ibidem, p. 330.
[23] “Art. 42. O plano diretor deverá conter no mínimo: (…) III – sistema de acompanhamento e controle”.
[24] Direito de Construir, p. 115-116.
[25] As Grandes Linhas…, p. 42-43.