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Loteamentos fechados e condomínio deitados

in Estudos Sobre Dispersão Urbana. Org. Nestor Goulart Reis. São Paulo: FAU-USP, 2007

 

  1. INTRODUÇÃO:

 

Toda a discussão relativa aos “loteamentos fechados”[1] cinge-se à falta de um regulamento específico a tal instituto jurídico. Não lograram as Leis no 4.591, de 16.12.1964, e a Lei no 6.766, de 19.12.1979, respectivamente a Lei de Condomínios e a Lei de Loteamentos, e mesmo o Código Civil de 2002, êxito em regular os loteamentos fechados, tão comuns nas cidades brasileiras atualmente.

 

A solução encontrada por grande parte dos autores que se dedicaram ao tema foi a de, simplesmente, reputar proibidos tais loteamentos ou condomínios, sob o argumento de que não haveria na legislação aplicável qualquer autorização para sua constituição. O argumento empregado está restrito ao fato de que a Lei de Loteamentos, lei de ordem pública, não previu os loteamentos fechados como forma de parcelamento do solo urbano, o que indicaria a solução proibitiva.

 

A resposta, entretanto, não satisfaz. Os loteamentos fechados são uma realidade em praticamente todas as grandes cidades brasileiras. Alguns Municípios do Estado de São Paulo – tomem-se como exemplos Ribeirão Preto, Valinhos e Vinhedo – são hoje praticamente constituídos por loteamentos fechados, de modo que não se pode, tão simplesmente, ignorar a existência dessas novas formas de urbanização.

 

Buscaremos, com o presente trabalho, trazer mais alguns elementos para discussão a respeito dos loteamentos fechados e dos condomínios deitados. Partiremos da premissa, como abaixo se verá, de que o fato de a legislação aplicável não ter tratado de tal forma de aproveitamento do solo urbano deve ser encarado como uma verdadeira lacuna jurídica, merecedora de comaltação pelo intérprete.

 

 

  1. A CELEUMA EM TORNO DOS LOTEAMENTOS FECHADOS E CONDOMÍNIOS DEITADOS:

 

A discussão em torno dos loteamentos fechados cessaria com a edição de um regulamento específico a seu respeito. A Lei de Loteamentos não tratou da matéria e, tratando-se de verdadeira lei de ordem pública, acabaria por vedar a possibilidade de que loteamentos constituídos sob os seus ditames sejam fechados. O argumento encontra respaldo na norma geral exclusiva, segundo a qual tudo aquilo que não está permitido está automaticamente proibido.

 

A Lei de Condomínios, por seu turno, oferece uma solução privada para os empreendimentos fechados, aqui intitulados de condomínios deitados. Dito diploma legal, amparado em princípios como o da livre iniciativa, respalda a constituição de tais condomínios em áreas de qualquer dimensão, o que, segundo posição de José Afonso da Silva, constituiria verdadeira burla à Lei de Loteamentos, devendo, portanto, ser impedida.

 

Para que o debate a respeito do tema seja mais bem compreendido, cabem, antes de serem apresentados os posicionamentos antagônicos da doutrina a respeito da matéria, algumas linhas a respeito dos aludidos diplomas legais e a forma como trataram os loteamentos e os condomínios.

 

2.1.      Síntese das disposições da Lei no 6.766/1979 e da Lei no 4.591/1964:

 

Não se olvide, aqui, que a Lei no 6.766/1979, a Lei de Loteamentos, e a Lei no 4.591/1964, a Lei de Condomínios, estabelecem regimes distintos. O primeiro, notadamente de direito público, trata do parcelamento do solo urbano, ao passo que o segundo, de direito privado, traça as regras relativas aos condomínios especiais de casas ou deitados.

 

A Lei de Loteamentos traz as normas gerais relativas ao parcelamento do solo urbano, que se dará mediante desmembramento ou loteamento. Importa-nos tratar dos loteamentos que, nos termos do parágrafo segundo do art. 2o da lei em questão, correspondem à “subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes”.

 

Além de não prever que os loteamentos poderão ser fechados, a Lei de Loteamentos estabelece, em seu art. 22, que, “desde a data do registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo”. Em outras palavras, tais bens passam a integrar o domínio do Município.

 

E, por tratarem-se, na maioria dos casos, de bens de uso comum do povo pertencentes ao domínio do Município, não se admitiria, salvo mediante autorização legal, o fechamento de tais áreas para utilização apenas pelos proprietários de lotes. Nessa hipótese, restaria inviabilizada a tentativa de, à luz da legislação federal a respeito de loteamentos, constituir-se um loteamento fechado. Note-se que o art. 22 é que dá suporte àqueles que argumentam ser vedada pelo ordenamento jurídico a constituição de loteamentos sob tal forma.

 

A Lei de Condomínios tratou, em seu art. 8o, da hipótese de constituição de condomínios em terrenos em que não haja edificação e deseje o proprietário, promitente comprador ou cessionário erigir mais de uma construção. Trata-se, claramente – e nesse ponto não há qualquer discordância na doutrina –, de hipótese de condomínio privado, regulado, portanto, pelo regime de direito privado.

 

O aludido art. 8o estabelece serem condições para os condomínios deitados especiais a sua constituição por casas térreas ou assobradadas, devendo, ainda, serem determinadas as áreas que constituirão passagem comum para as vias públicas ou para as unidades entre si. Sustenta-se, com isso, que a figura do condomínio deitado constituídos apenas por lotes – não edificados, ao contrário do que consta do art. 8o – não encontraria respaldo no ordenamento jurídico.

 

Abre-se, aqui, um necessário parêntese: com a edição do Código Civil de 2002, alguns autores, dentre os quais Marco Aurélio S. Viana[2], passaram a sustentar que a Lei de Condomínios, na parte que tratou dos condomínios deitados, i.e., art. 8o em questão, teria sido inteiramente revogada.

 

Note-se, entretanto, que o Código Civil, em seu art. 2.045[3], não revogou expressamente a Lei no 4.591/1964, tampouco tratou, em seu Capítulo VII, daquela modalidade de condomínio prevista no já mencionado art. 8o. Crê-se, assim, que tal dispositivo continua em vigor, posição esta também defendida por Theotônio Negrão[4] e Paulo Eduardo Fucci[5], dando respaldo à constituição de condomínios deitados sob os termos da legislação aludida.

 

Mesmo Marco Aurélio S. Viana, que se mostra favorável à tese da revogação, entende que as disposições do Código Civil de 2002 a respeito de condomínio dão amparo aos condomínios deitados, a exemplo do que já fazia a Lei de Condomínios. Confira-se, a esse respeito, o que diz o autor: “não vemos obstáculo à utilização de terrenos não construídos para erigir mais de uma edificação, seja ela multifamiliar ou unifamiliar [6].

 

 

2.2.      A Posição da Doutrina a esse Respeito:

 

A questão relativa à natureza jurídica dos empreendimentos fechados e, bem assim, de sua regulamentação pelo ordenamento jurídico, comporta, ainda, acirrados debates entre aqueles que se dedicam ao tema. Não se tem a pretensão, por óbvio, de se esgotar a posição daqueles autores, mas, sim, de pontuar os principais argumentos apresentados por cada um dos lados.

 

José Afonso da Silva reconhece a existência de dois regimes distintos, um a regular o loteamento e outro relativo aos condomínios privados[7]. Enquanto, no primeiro caso, como já foi acima mencionado, concebem-se lotes individualizados, com a integração de vias, praças e espaços livres ao domínio do Município, no caso dos condomínios, o terreno, então “loteado”, perde a sua individualidade, passando a compor parte de um todo, o condomínio.

 

Todavia, o Autor crê que o disposto no art. 8o da Lei de Condomínios não autoriza a constituição dos chamados condomínios deitados ou fechados[8], compostos apenas de lotes. Como ressalta, “foi ele estabelecido, certamente, não para tal finalidade, mas para possibilitar o aproveitamento de áreas de dimensão reduzida no interior de quadras, que, sem arruamento, permitam a construção de conjuntos de edificações, em forma de vilas, sob regime condominial[9]. Termina José Afonso da Silva por concluir o seguinte:

 

Quando, no entanto, a situação extrapola desses limites, para atingir o parcelamento de gleba com verdadeiro arruamento e posterior divisão das quadras em lotes, (…), então, aquele diapositivo não pode mais constituir fundamento do aproveitamento espacial, em forma de condomínio, porque aí temos formas de parcelamento urbanístico do solo, que há de reger-se pelas leis federais sobre loteamento e pelas leis municipais sobre a matéria urbanística[10].

 

Importa ressaltar, por oportuno, que o próprio José Afonso da Silva termina por reconhecer ser “indispensável estabelecer uma legislação que inclua tais ‘loteamentos fechados’ como uma espécie de loteamento[11]. Assume, portanto, a importância dos loteamentos fechados e dos condomínios deitados como forma de urbanização e, mais do que isso, reconhece a necessidade de se buscar no ordenamento jurídico amparo legal para a sua constituição.

 

Toshio Mukai também entende que os condomínios deitados não encontram respaldo na legislação aplicável. Sustenta que, não havendo edificação nos lotes a serem comercializados, não há que se cogitar da aplicação, in casu, do art. 8o da Lei de Condomínios[12]. Deve o loteamento, ao contrário, ser elaborado segundo as diretrizes da Lei de Loteamentos.

 

O aludido Autor não afasta, é bem verdade, a possibilidade de existirem condomínios deitados, constituídos segundo os termos da Lei de Condomínios. Não chega, mesmo, a fazer qualquer ressalva quanto ao tamanho de tais condomínios, a se crer que o Autor admite a possibilidade de se constituírem tais condomínios em glebas de qualquer tamanho. O Autor faz uma ressalva, contudo: não sendo preenchidos os requisitos do art. 8o da Lei de Condomínios, deverão ser observados os termos da Lei de Loteamentos, a qual, no seu entender, não viabiliza a constituição de loteamentos fechados[13].

 

Anote-se, ainda, o entendimento de Lucia Valle Figueiredo, para quem as ruas, praças e outros espaços são partes, nos termos da Lei de Loteamentos, do patrimônio público, de modo que, à luz de tal diploma legal, não haveria como admitir-se a figura do loteamento fechado. Apenas se editada lei municipal específica, autorizando ou permitindo o fechamento do loteamento, é que a autora vislumbra tal possibilidade[14].

 

É importante frisar, todavia, que a doutrina administrativista reconhece, praticamente à unanimidade, que aquelas áreas que passam a integrar o domínio do Município podem ser objeto de uso privativo por particulares. Logo, desde que estejam de posse de uma permissão, autorização ou concessão de uso, aos particulares poderá ser outorgado o uso exclusivo de tais bens, o que autorizaria, na prática, o fechamento do loteamento[15].

 

A possibilidade de os bens públicos, não importando qual seja a sua categoria, serem passíveis de uso pelos particulares[16] resolve o problema dos loteamentos fechados. Muito embora, de fato, a Lei de Loteamentos não preveja expressamente os empreendimentos fechados como forma de parcelamento do solo urbano, o fato é que o direito administrativo nos fornece os instrumentos necessários para que o fechamento seja viabilizado.

 

Paralelamente, tornando à questão do art. 8o da Lei de Condomínios, Limongi França ressalta que o fato de tal dispositivo não ter tratado especificamente de condomínios formados apenas por lotes não pode ser entendido como uma proibição aos condomínios deitados. Vigora, nesse caso, tratando-se de verdadeira relação de direito privado, o princípio da autonomia da vontade, de modo que não haveria qualquer obstáculo à comercialização de condomínios deitados constituídos apenas por lotes sem edificação[17].

 

Para Celso Antônio Bandeira de Mello não deve prosperar o argumento apresentado acima por José Afonso da Silva, no sentido de que os condomínios de que trata o art. 8o da Lei de Condomínios poderiam ser implantados apenas em porções de terra de reduzida metragem. Como ressalta Celso Antônio Bandeira de Mello, não é possível extrair do art. 8o em questão a limitação que se pretende[18].

 

Dito dispositivo legal, prossegue o administrativista, “não teve em mira tão-só quadras não arruadas, mas, pelo contrário, além de levar em conta a passagem para a via pública, pressupôs vias internas de comunicação entre as diferentes unidades condominiais, sem estabelecer qualquer restrição no que atina ao número delas e, pois, à extensão da área que abrangerá[19]. Em síntese, tendo em vista inexistir um limite objetivo na legislação aplicável a respeito do tamanho das glebas em que poderão ser implantados tais condomínios e, ainda, a possibilidade de constituição de um sistema viário interno, não há como se reputar válida a objeção apresentada por José Afonso da Silva a respeito da constituição de tais condomínios deitados.

 

Veja-se, também, a posição de Eurico de Andrade Azevedo a respeito dos condomínios deitados:

 

Trata-se de modalidade nova de aproveitamento do espaço, em que se procura conjugar a existência de lotes individuais de uso exclusivo com áreas de uso comum dos condôminos, à semelhança do que ocorre nos edifícios de apartamento. No ‘loteamento fechado’ não há vias e logradouros públicos; as áreas destinadas à circulação e lazer não são transferidas ao Poder Público pois continuam a pertencer aos proprietários da gleba, que sobre elas têm utilização privativa[20].

 

Finalmente, destaca-se que a posição de Hely Lopes Meirelles é bastante semelhante à de Eurico de Andrade Azevedo. Os condomínios deitados, na visão do Autor, devem “prosperar”, fazendo-se necessário, apenas, o devido regramento das vias internas e dos espaços coletivos, os quais poderão ficar sob responsabilidade de uma administração centralizada[21].

 

 

  1. NOVOS PADRÕES DE URBANIZAÇÃO:

 

Como bem destaca Marco Aurélio S. Viana[22], os suportes constitucionais que informaram a elaboração da Lei no 6.766/79 partiram de uma concepção tradicional de parcelamento do solo urbano, concebendo-se, este como gênero, dos quais o loteamento e o desmembramento são espécies. Era natural, portanto, que os loteamentos fechados – ou condomínios deitados – ainda não fossem previstos pela legislação então aplicável.

 

Até meados da década de 1970 não se concebia outra forma de urbanização no Brasil. A Lei de Loteamentos é resultado de uma forma de urbanização consagrada no Brasil desde o início do século passado, concentrada nas mãos do Poder Público. No período colonial, as decisões a respeito do urbanismo estavam a cargo das ordens religiosas, passando, no período de 1930 em diante, ao controle dos órgão estatais.

 

Tal quadro perdurou até meados da década de 1970, quando se passa a observar o fenômeno da dispersão urbana e, bem assim, o fato de que as comunidades começaram a se organizar sob formas condominiais. O capital privado assume especial importância nesse contexto, alterando significativamente os padrões de urbanização[23].

 

O arquiteto e urbanista Nestor Goulart Reis, ao tratar da dispersão urbana, traz algumas considerações importantes a respeito do tema:

 

Ao longo da segunda metade do século XX, com o aumento das densidades em decorrência dos congestionamentos, à vista da melhoria do sistema de transporte rodoviário, quase todas as atividades até então localizadas nas áreas centrais das metrópoles e ao seu redor, em bairros industriais, de comércio atacadista e de serviços, foram sendo deslocadas para as áreas periféricas. De início o deslocamento se fez para municípios vizinhos e para áreas periféricas. Nas últimas décadas do século, os deslocamentos já se faziam para fora do sistema metropolitano[24].

 

Como fruto desse novo modelo de urbanização começam a surgir ao longo das rodovias e das novas áreas de dispersão os primeiros empreendimentos fechados. Novamente, é Nestor Goulart Reis quem ressalta o quanto segue:

 

Por volta de 1970, com a construção de rodovias mais modernas e o aumento da mobilidade, uma parte importante da classe média já estava optando por investimentos em terrenos localizados em condomínios horizontais, nos quais poderiam construir suas residências, afastadas dos congestionamentos e da poluição dos bairros tradicionais[25].

 

A forma condominial de organização é, sem sombra de dúvidas, a que melhor se adaptou ao novo modelo de urbanização, acompanhada pela privatização dos espaços de uso coletivo. Se antes os particulares reuniam-se nas praças, hoje o fazem nos shoppings center. Se anteriormente freqüentavam os parques, lagos e rios, os particulares, agora, reunem-se nos clubes particulares, onde desfrutam de grande infra-estrutura. É, sem sombra de dúvidas, um mundo novo, que em nada se confunde com aquele que serviu de contexto fático à elaboração da Lei de Loteamentos.

 

Note-se, nesse sentido, que o vazio deixado pelo Poder Público também foi um dos grandes responsáveis pela constituição dos chamados espaços privados de convivência. Com efeito, questões envolvendo segurança, transporte público e mesmo lazer forçaram os proprietários e particulares em geral a constituírem espaços privados de convivência, aos quais a forma condominial melhor se adaptou[26].

 

Como lembra Nestor Goulart Reis, “já não é o simples parcelamento, com a simples divisão da gleba em lotes, como até recentemente[27], mas empreendimentos de alta complexidade que passaram a marcar o urbanismo no Brasil, a partir de meados da década de 1970. O autor, mais adiante, continua: “os traçados são mais bem elaborados e incluem necessariamente usos diferenciados em um só conjunto, infra-estrutura e, quase sempre, um esquema de gestão das partes de uso comum e mesmo de alguns empreendimentos, como hotéis, ‘shoppings’ e áreas de estacionamento[28].

 

Na cidade de São Paulo, por exemplo, vemos os inúmeros shoppings center, clubes e até mesmos praças de lazer, como é o caso do conjunto Brascan localizado no Bairro do Itaim Bibi e de tantos outros empreendimentos de uso misto que começam a surgir. O lazer cada vez mais é desfrutado em espaços privados, realidade para a qual a Lei de Loteamentos não atenta. Outro exemplo que demonstra a mudança de padrões é daquelas pessoas que hoje trabalham em São Paulo, mas vivem em outros focos de dispersão, como Valinhos e Vinhedo, que se organizam e fretam seus próprios ônibus, à margem do sistema oficial de transporte.

 

Naturalmente, não cabe aqui a crítica do novo modelo de urbanização. Nestor Goulart Reis lembra que “não existem uma forma certa e outra errada de tecido urbano que seja a única considerada como correta[29]. O que se deve ser em mente é que “os padrões estão sempre em mudança. Não podemos incidir no erro de críticas subjetivas sobre as mudanças que estão em curso, visando imobilizar os padrões urbanísticos do século XX[30].

 

Há na questão dos loteamentos fechados e dos condomínios deitados um ponto que merece atenção e que representa, em parte, a síntese de nossos argumentos: não se deve mais conceber o interesse público como sendo antagônico ao interesse privado. Em muitos casos, aquele coincide com este. É o que se nota, por exemplo, quando da constituição de parques defronte edifícios particulares, que certamente serão beneficiados pela bela vista e pelos espaços verdes criados. Ora, não se nega uma coincidência, nesse caso, do interesse público e do interesse privado; tal circunstância, entretanto, não autoriza que se conclua pela existência de qualquer ilegalidade.

 

Floriano de Azevedo Marques Neto ressalta que “esta interpenetração entre as esferas do público e do privado é hoje de tal monta que passa a ser quase impossível manter a concepção de oposição cabal entre interesse público e privado, passando-se a trabalhar com a noção de coatividade, de cooperação[31]. A recente lei federal que criou as parcerias público-privadas é, aliás, um exemplo bem característico de tal “interpenetração”.

 

Queremos dizer com isso que os padrões de urbanização mudaram. Não se pode mais compreender o desenvolvimento de uma cidade como uma atividade exclusivamente estatal. Se, antes, o interesse particular estava voltado ao aproveitamento desmesurado da propriedade privada, em franca dissonância com as normas urbanísticas editadas pelo Poder Público, é bem verdade que, hoje, o capital privado é uma das molas motrizes do urbanismo, o que se nota, não apenas pelos loteamentos fechados e condomínios deitados, mas, também, pelos crescentes espaços privados de uso coletivo, como é o caso dos shoppings e praças de lazer.

 

Em apertada síntese, é importante compreender que os padrões urbanísticos mudaram, principalmente a partir de meados da década de 1970, sendo certo que a legislação aplicável não atende aos novos padrões – ou, melhor dizendo, sequer poderia tê-los previsto. É do que se passa a tratar no item abaixo.

 

 

  1. A FALTA DE REGIME JURÍDICO PRÓPRIO:

 

À luz do que se expôs até o momento, observou-se que aos loteamentos fechados e aos condomínios deitados ainda não foi oferecida regulamentação específica[32]. Até mesmo aqueles autores que defendem de forma virulenta a impossibilidade de que o direito urbanístico abrace tais formas de urbanização assumem a existência de lacuna no ordenamento jurídico quanto a esse ponto. Entretanto, diante da cogência da Lei de Loteamentos, optam por simplesmente reputarem proibidos os loteamentos fechados e os condomínios deitados.

 

4.1.      Uma necessária nota teórica:

 

Assume-se, portanto, a existência de lacuna jurídica no que tange aos loteamentos fechados e aos condomínios deitados. Tais modelos, enquanto forma de urbanização, surgem em meados da década de 1970, ganhando maior aceitação ao longo da década de 1980. Não se pode supor que a Lei de Loteamentos, que data de 1979, e cujo processo legislativo e plano fático têm origem bem antes, poderiam prever dito novo padrão.

 

Como bem ressalta Maria Helena Diniz, é praticamente impossível que o direito regulamente todas as condutas humanas, na medida em que a vida em sociedade está em constante mudança: “é lacunoso o direito porque, como salientamos, a vida social apresenta nuanças nas condutas compartidas, problemas surgem constantemente, mudam-se as necessidades com os progressos, de maneira que impossível seria que as normas jurídicas regulamentassem toda sorte de comportamento[33].

 

Não se admite, portanto, o argumento baseado na norma geral exclusiva. A máxima aplicável ao direito público de que “o que não está permitido, está proibido” não leva em conta, no caso dos empreendimentos fechados, o fato de que a legislação pertinente não os previu – o que levaria à conclusão de que eles seriam proibidos – devido ao fato de que sequer existiam no plano fático. Admitir-se a aplicação da norma geral exclusiva ao presente caso levaria à conclusão de que o sistema jurídico é estático, e que, portanto, todas aquelas condutas não abarcadas pela norma jurídica, porque inexistentes à época de sua edição, automaticamente seriam proibidas.

 

A norma geral exclusiva, no caso do ordenamento jurídico brasileiro, deve conviver com aquela inserida no art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil, Decreto-Lei no 4.657, de 09.09.1942, segundo a qual, quando a lei for omissa o juiz poderá socorrer-se da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito. Isso significa dizer que a norma geral exclusiva convive com a norma geral inclusiva. É o que ensina Norberto Bobbio:

 

Se, no caso de comportamento não-regulamentado, não tivéssemos outra norma para aplicar a não ser a exclusiva, a solução seria óbvia. Mas agora sabemos que em muitos casos podemos aplicar tanto a norma que quer os comportamentos diferentes regulamentados de maneira oposta ao comportamento regulamentado, quanto a norma que quer os comportamentos semelhantes regulamentados de maneira idêntica ao regulamentados[34].

 

A dúvida, nesse caso, residiria em se decidir pela aplicação da norma geral exclusiva – que ofereceria uma solução proibitiva aos empreendimentos fechados, porque não previstos na Lei de Loteamentos – ou, então, pela norma geral inclusiva, que remete à aplicação da analogia, à busca de soluções jurídicas semelhantes para a regulamentação dos condomínios deitados e dos loteamentos fechados. E a decisão entre uma ou outra norma geral, como ressalta Norberto Bobbio, cabe ao intérprete[35].

 

No caso dos loteamentos fechados e dos condomínios deitados, mormente face à sua ampla aceitação como forma de organização coletiva e como solução urbanística, a decisão deve ser tomada em favor da norma geral inclusiva e, bem assim, do recurso à analogia, buscando encontrar no ordenamento jurídico, em casos semelhantes, a regulação jurídica necessária. Alguns pontos levam a tal conclusão:

 

O primeiro deles, como já exposto acima, consiste no fato de que a Lei de Loteamentos é fruto de um padrão urbanístico claramente estatal, que tem origem na primeira metade do século passado, e que, portanto, não abarcou – e nem poderia, nesse contexto – os loteamentos fechados e os condomínios deitados. Cabe aqui uma ressalva: situação diferente haveria, se, hoje, fosse editada uma nova lei tratando do parcelamento do solo urbano e, ainda assim, não fossem os loteamentos e os condomínios nela previstos. Nesse caso, o silêncio do legislador poderia ser interpretado como proibição, na medida em que, não obstante a sua existência no substrato fático, teria o legislador optado por não regulá-los.

 

Outro aspecto que deve ser considerado é o de que os empreendimentos fechados são uma realidade em praticamente todas as cidades brasileiras, principalmente naquelas localizadas na região sudeste. Mais do que isso, fazem parte de um novo padrão urbanístico diferente daquele que orientou a edição da Lei de Loteamentos e, como tal, devem ser objeto de tratamento adequado pelo ordenamento jurídico.

 

Questiona-se: o que melhor atenderia aos princípios constitucionais da função social das cidades e da propriedade, a simples determinação de que passem todos os empreendimentos fechados a ser abertos ou, então, a aceitação de que são eles uma realidade como forma de organização urbana, como forma de organização de espaços coletivos e, como tal, dignos de regulamentação jurídica adequada? A argumentação aqui desenvolvida leva, necessariamente, à conclusão pela segunda opção.

 

A urbanização racional é, sem sombra de dúvidas, aquela que melhor atende ao princípio da função social das cidades e da propriedade. Uma outra questão é pertinente nesse estágio: o que satisfaz a função social da propriedade e das cidades, a proibição de que sejam as margens das represas Billings ocupadas, abrindo-se a possibilidade da implantação de loteamentos clandestinos, em função do vazio deixado pela segurança pública e pelo Poder Judiciário, ou, então, garantir-se o parcelamento racional do solo, com o desenvolvimento de novos padrões urbanísticos, dentre os quais os relativos aos empreendimentos de que aqui se trata?

 

A resposta, novamente, é bastante clara, no sentido de que se deve assegurar a ocupação racional. Eis o cerne do que aqui se quer dizer: a resposta baseada na norma geral exclusiva, proibitiva, portanto, não significa o necessário atendimento da função social das cidades e da propriedade. Não foi por outra razão que, no começo do presente trabalho, já havíamos sinalizado que a solução proibitiva não nos satisfaz, devendo ser buscada no ordenamento jurídico a regulamentação adequada para os loteamentos fechados e para os condomínios deitados.

 

Lembre-se, em terceiro lugar, que a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade dotaram o direito urbanístico de caráter dinâmico, devendo tal ramo do direito adaptar-se constantemente aos novos padrões de urbanização. Veja-se, a título de exemplo, o art. 40, parágrafo 3o, do Estatuto da Cidade, que determina revisões periódicas do Plano Diretor.

 

Admitir-se, nessa linha de raciocínio, a aplicação da norma geral exclusiva, indicativa de que seria proibida a constituição dos loteamentos fechados e dos condomínios deitados, significa a imobilização do direito urbanístico. Novas formas de urbanização estariam, nessa hipótese, ainda vinculadas a padrões jurídicos do início do século passado – são situações como esta, aliás, que levam à proliferação de ocupações irregulares, como aquelas que tomam conta das áreas de mananciais.

 

Por fim, é importante destacar que outros princípios constitucionais também norteiam os loteamentos fechados e os condomínios deitados, como o da autonomia da vontade, o da segurança e o da proteção ao meio ambiente. Logo, não se deve encarar a questão dos empreendimentos fechados apenas sob a óptica de que a todos deve ser assegurado o acesso aos bens públicos, sob pena de se estar negando validade aos princípios acima mencionados. A respeito dessa assunto, trataremos em maiores detalhes no item 4.3 abaixo.

 

Tais argumentos, como já se disse, levam à opção pela norma geral inclusiva. Deve-se, assim, buscar em casos semelhantes, com recurso à analogia, os elementos que dêem a regulamentação jurídica necessária aos loteamentos fechados e aos condomínios deitados.

 

 

4.2.      Integração do Ordenamento Jurídico:

 

Resta bastante claro, portanto, que aos empreendimentos fechados, sejam eles loteamentos ou condomínios deitados, deve ser dada regulação jurídica adequada. Como já se pôde verificar até o presente momento, a Lei de Loteamentos e a Lei de Condomínios – e mesmo o Código Civil – apresentam elementos suficientes à solução do problema. Tratemos, primeiramente, da questão dos loteamentos fechados.

 

A Lei de Loteamentos apresenta apenas o loteamento em si e o desmembramento como formas de parcelamento do solo urbano. É bem verdade que o aludido diploma legal não faz qualquer referência à possibilidade de os loteamentos virem a ser fechados. Mais do que isso, o fato de as vias, praças, áreas livres etc., nos termos do art. 22 da Lei no 6.766/1979, passarem a integrar o domínio do Município desde o registro do empreendimento no ofício de registro de imóveis, leva à conclusão de que, se analisada isoladamente, a Lei de Loteamentos não oferece uma solução adequada para o problema dos empreendimentos fechados.

 

A doutrina, nesse contexto, tem encontrado respaldo legal para tais loteamentos na utilização de instrumentos jurídicos como a concessão e a permissão de uso de bens públicos, mormente no instituto da concessão real do direito de uso. Por meio de tais instrumentos se garante ao particular o uso privativo do bem público.

 

Confira-se, a esse respeito, o que diz Maria Sylvia Zanella di Pietro: “o uso privativo, que alguns denominam uso especial, é o que a Administração Pública confere, mediante título jurídico individual, a pessoa ou grupo de pessoas determinadas, para que o exerçam, com exclusividade sobre parcela do bem público[36].

 

Não haverá, como destaca Luiz Manuel Fonseca Pires, necessidade de licitação na outorga de tais direitos. Isso porque o interesse na utilização de tais bens é exclusivo dos moradores da área, o que inviabiliza a possibilidade de competição em torno do objeto[37]. Nesse mesmo sentido Toshio Mukai, para quem “trata-se, sob este aspecto, de hipótese de inexigibilidade de licitação autorizada no caput do art. 25 da Lei Federal n. 8.666/93 porque inviável a competição neste caso[38]. Anote-se, também, posição idêntica de Floriano de Azevedo Marques Neto[39].

 

A permissão de uso é ato administrativo unilateral, precário e revogável a qualquer tempo, por meio do qual a Administração Pública faculta ao particular a utilização, em caráter exclusivo, de um bem pertencente ao domínio público. Marco Aurélio S. Viana esclarece, todavia, que, por meio da permissão de uso, o administrado não tem a segurança jurídica necessária. Isso porque, “a Administração Pública pode a qualquer tempo, como regra, revogar ou modificar a permissão, segundo suas conveniências, sem indenizar o particular[40].

 

A concessão, por outro lado, assume caráter bilateral no caso da utilização de bens públicos, o que traz ao particular a necessária segurança jurídica para a implantação de um empreendimento. É o que Celso Antônio Bandeira de Mello bem ressalta: “a concessão de serviço público e a de obra pública são atos bilaterais; já, as de prêmio ou de cidadania são unilaterais[41].

 

Em outras palavras, a concessão de uso de bem público, a exemplo da concessão de serviço público, é ato bilateral, por meio do qual a Administração trespassa para o particular a utilização de determinado bem para uma finalidade específica[42]. Face ao caráter bilateral, se o Poder Público vir a rescindir a concessão antes do término do prazo estipulado terá de indenizar o particular[43].

 

Face às características acima apresentadas, entre a concessão e a permissão de uso, a primeira alternativa é o meio mais adequado para a utilização exclusiva, pelo particular, de bens que integrem o patrimônio público municipal, mormente face à segurança jurídica que oferece aos proprietários dos lotes.

 

A concessão de direito real de uso, por seu turno, é prevista expressamente pelo art. 7o do Decreto-Lei no 271, de 28.02.1967. Dispõe o referido artigo, ao conceituar o instituto, que “é constituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social”.

 

Em grande síntese, por meio do instituto da concessão do direito real  de uso, outorga-se ao particular o direito de, às suas próprias expensas, administrar e responsabilizar-se por determinada área pertencente ao patrimônio público, sem que, contudo, o Poder Público deixe de manter a propriedade do solo. Elvino Silva Filho, ao tratar da aplicabilidade da concessão do direito real de uso, lembra o seguinte:

 

Não basta, por conseguinte, a denominação de ‘rua’ ou ‘praça’ dentro de um loteamento para inserir tais bens entre os bens de uso comum do povo. São bens do domínio do Município, inegavelmente (art. 22 da Lei 6.766/79). Mas a administração do Município pode afetá-los, destiná-los, ao aprovar o loteamento fechado por ato administrativo, para outra categoria de bens – os de uso especial (n.II do art. 66 do CPC) – e permitir ou conceder o seu uso para os proprietários dos lotes do loteamento fechado[44].

 

O fundamento para a outorga do direito de uso privativo de bens públicos por particulares reside no fato de que a aprovação de loteamentos é ato privativo do Município[45]. É natural, portanto, que possa o Município dispor livremente daqueles bens que passem a integrar seu domínio, como dispõe a Lei de Loteamentos. Cabe, portanto, aos Municípios legislar sobre a possibilidade de ser outorgada a concessão do direito real de uso no caso de loteamentos fechados.

 

O instituto da concessão do direito real de uso não foi bem tratado pela legislação federal, que apenas faculta sua utilização para fins de urbanização, trazendo o seu conceito. Lúcia Valle Figueiredo, ao tratar da concessão de uso especial, bem ressalta o seguinte:

 

Não vemos, na análise das competências municipais, como entender que a outorga da concessão de uso especial, no que concerne aos Estados, Municípios e Distrito Federal, portanto, possa se encartar no conceito de normas gerais. Portanto, vemos nítida invasão da competência legislativa da União nesses outros entes políticos[46].

 

Diversos municípios, nesse contexto, lançando mão daquela competência que lhes é outorgada pela Constituição Federal, editaram legislação própria a esse respeito, autorizando o fechamento de loteamentos constituído nos termos da Lei n6766/1979, mediante a outorga da concessão do direito real de uso ou de outro instituto aplicável.

 

Tome-se, como exemplo, o Município de Campinas, no Estado de São Paulo, que, muito embora não trate especificamente da concessão do direito real de uso, autoriza a permissão para utilização de bens públicos. A Lei Municipal no 8.739, de 09 de janeiro de 1996, autoriza expressamente o fechamento de loteamentos aprovados de acordo com a Lei de Loteamentos, impondo ao empreendedor, entretanto, determinadas obrigações, dentre as quais, a de manter as áreas públicas que tenham sido objeto de permissão.

 

Faculta a Lei Municipal de Campinas, portanto, que os loteamentos constituídos nos termos da Lei de Loteamentos venham a ser fechados, por meio de decreto específico expedido pelo Poder Executivo Municipal. Não se vislumbra qualquer irregularidade na postura adotada pelo Município de Campinas, seja porque é expressamente consignado o caráter precário da permissão, de modo que o Município poderá, a qualquer tempo, revogá-la, sem qualquer tipo de indenização ao loteador ou aos proprietários de lotes ou, ainda, porque se prevê a constituição de uma associação que será a responsável pela preservação daquelas áreas que passarão a integrar o patrimônio municipal, respondendo perante o Município.

 

Mais do que isso, a lei de Campinas autoriza expressamente a utilização pelos particulares de tais bens do Município, nos casos em que especifica e desde que preenchidos os requisitos nela apontados. Como bem ressalta Celso Antônio Bandeira de Mello, “a desafetação dos bens de uso comum, isto é, seu trespasse para o uso especial ou sua conversão em bens meramente dominicais, depende de lei ou de ato do Executivo praticado na conformidade dela[47]. Logo, atendida tal exigência pelo Município na elaboração da legislação específica, não há nenhum impedimento a que o Município disponha de tais bens seus, de modo a autorizar ao particular o fechamento de um determinado loteamento.

 

Note-se, ainda, que não há como se cogitar de qualquer ofensa ao interesse público. Isso porque, as razões que levariam o Município a autorizar o fechamento de determinado loteamento devem, necessariamente, atenção ao princípio da função social da cidade e da propriedade. Nesses termos, havendo, por exemplo, prejuízo à circulação de veículos ou ao crescimento da cidade, parece ser evidente que o Poder Executivo não estaria autorizado a permitir a utilização privada de ruas, praças etc. No entanto, naqueles outros casos em que não há qualquer impedimento dessa ordem, cremos que o fechamento de loteamento deve ser autorizado.

 

Há, na questão dos loteamentos fechados, um último aspecto que merece atenção. Muito embora a Lei de Loteamentos não preveja a constituição de qualquer forma associativa como sendo a responsável pela administração do loteamento, é bem verdade que a outorga do direito de se utilizar dos bens públicos forçará a reunião dos proprietários de lotes em torno de uma associação.

 

Isso porque a outorga de tal direito pelo Poder Público impingirá aos proprietários uma série de obrigações, principalmente no que tange à conservação dos bens públicos e ao exercício da atividade fiscalizadora. Floriano de Azevedo Marques Neto ressalta, nesse sentido, que “o único agente privado em condições objetivas e subjetivas de aceitar fornecer os meios necessários à proteção ambiental é a associação de moradores local[48].

 

Em outras palavras, mesmo no caso dos loteamentos, a forma “condominial” de administração dos empreendimentos é, sem sombra de dúvidas, a que melhor se adapta na prática. Haverá a necessidade de contribuições mensais, organização de uma administração central, regras quanto à utilização e conservação dos espaços coletivos, reuniões periódicas de associados etc., características estas em muito semelhantes às relativas à administração de um condomínio.

 

Paralelamente, devem ser analisados os termos da Lei de Condomínios, os quais, sem sombra de dúvidas não comportariam maiores discussões, na medida em que todas as áreas de lazer, ruas, praças e demais áreas institucionais são privadas, não se cogitando, em nenhum momento, a doação de áreas ao Município como ocorre se aplicada a Lei de Loteamentos.

 

Dois grandes tópicos são objeto de discussão a respeito da possibilidade de condomínios deitados serem constituídos de acordo com o que dispõe a Lei no 4.591/1964: o fato de não se aceitarem condomínios constituídos apenas por lotes, na medida em que o art. 8o da aludida lei faz referência a edificações, e a inexistência de limites ao tamanho das áreas em que poderão ser constituídos tais condomínios, o que poderia representar uma burla à Lei de Loteamentos, na medida em que, na prática, estar-se-ia realizando o parcelamento de grandes áreas de terra, sob o título, contudo, de condomínio deitado.

 

No que tange ao primeiro tópico, Marco Aurélio S. Viana ressalta que “a dificuldade de se aceitar o condomínio por unidade autônoma de terreno, que denominamos loteamento horizontal, prende-se a esse fenômeno: estudam-se realidades novas com conceitos antigos[49]. Para o autor não há qualquer inconveniente em se adotar a terminologia loteamento para exprimir a realidade dos condomínios compostos apenas de lotes como sendo uma figura jurídica autônoma.

 

E termina por concluir o seguinte: “o art. 8o da Lei no 4.591/64 dá-lhe o regulamento jurídico adequado. Em verdade o texto legal citado ampara, sem esforço, a figura jurídica em exame. Com adaptações adequadas, não é difícil solucionar legalmente esse instituto[50].

 

Há que se ter em mente, ademais, que a Lei de Condomínios trata, essencialmente, de relações de direito privado, com relação às quais vige o princípio da autonomia da vontade. A promoção de condomínios compostos apenas de lotes, desde que respeitados os ditames da Lei de Condomínios, não representa qualquer ilicitude, uma vez que, além de não trazer qualquer tipo de prejuízo ao patrimônio público, implica na promoção do princípio acima mencionado.

 

Note-se, ademais, que o Decreto-Lei no 271, que antecedeu a Lei no 6.766/1979, ao tratar dos loteamentos, estabelecia expressamente o seguinte: “aplica-se aos loteamentos a Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lotes aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção da edificação”. Ora, tomando-se como base tal dispositivo, poder-se-ia concluir que, sob os auspícios da legislação anterior, quaisquer loteamentos seriam empreendimentos eminentemente privados, com ruas, praças e áreas de lazer privadas, o que sem sombra de dúvidas contrariaria o espírito de um loteamento, contido no próprio Decreto-Lei no 271, em especial no seu art. 4o, e, mais tarde, na Lei de Loteamentos.

 

Em face de tal contradição, também se poderia supor que os loteamentos, em se seguindo os termos da Lei no 4.591/1964, também devessem ser constituídos apenas por edificações, o que se sabe não corresponder à realidade. É o que destaca Celso Antônio Bandeira de Mello:

 

o que se tem que extrair do art. 3o do Decreto-Lei (…) é o propósito de reconhecer aos condomínios em apreço (que há muito já se haviam imposto como uma realidade social, fática, incontestável) o caráter de fontes de individualização de unidades de solo e não necessariamente de edificações atreladas a elas, razão pela qual equiparou as obras de infra-estrutura de tais condomínios às de edificação a cargo do incorporador nas construções dos condomínios de edifícios de apartamentos[51].

 

Marco Aurélio S. Viana, ademais, estabelece uma comparação com o disposto na Lei no 6.766/1979[52]. Os parágrafos primeiro e segundo do art. 2o da Lei de Loteamentos rezam que, por meio do desmembramento e do loteamento, constituem-se lotes destinados à edificação. Tal realidade, entretanto, como ressalta o autor, não gera a exigência de que o parcelador do solo urbano se obrigue a edificar ou mesmo que os adquirentes de lotes tenham tal obrigação – ressalva feita, por óbvio, ao disposto nos arts. 5o e 6o do Estatuto da Cidade, que instituíram o parcelamento compulsório do solo urbano. Se não se exige a obrigação de edificação daqueles que parcelam o solo, a mesma cogência não dever ser atribuída ao art. 8o da Lei de Condomínios, principalmente porque lida com interesses flagrantemente privados.

 

O argumento acima, frise-se, é reforçado pelo disposto no art. 68 da Lei no 4.591/1964, que faz referência à pretensão de “constituir ou mandar construir habitações isoladas”, redação em tudo semelhante àquela da Lei de Loteamentos. Em síntese, não há como se extrair do ordenamento jurídico a proibição de que sejam constituídos condomínios apenas de lotes.

 

Há que se analisar, também, a questão relativa ao tamanho dos lotes ou glebas em que poderão ser implantados condomínios deitados. José Afonso da Silva, como se viu acima, defende que o condomínio previsto no art. 8o da Lei de Condomínios foi estabelecido “para possibilitar o aproveitamento de áreas de dimensão reduzida no interior de quadras, que, sem arruamento, permitam a construção de conjuntos de edificações, em forma de vilas, sob regime condominial[53], de modo que, não configurados tais requisitos, o condomínio deitado não encontraria reslpado no aludido art. 8o, sob pena de constituir verdadeira burla à Lei de Loteamentos.

 

Em que pese a lição de José Afonso da Silva, a Lei no 4.591/1964 não permite concluir pela existência de qualquer restrição. Marco Aurélio S. Viana destaca que “a Lei no 4.591/1964 não faz distinção dessa ordem. Se o intérprete distinguir estará ferindo o brocardo úbi lex non distinguil nec nos distinguere debemus’[54], no que é acompanhado por Celso Antônio Bandeira de Mello: “não é possível extrair do dispositivo em causa a concepção limitativa[55].

 

Note-se, também, que a própria Lei de Condomínios prevê a possibilidade de que tais loteamentos contenham ruas internas e não apenas vias destinadas à comunicação das unidades autônomas com a via pública. De fato, o art. 8o, alínea “d”, estabelece que na constituição de tais condomínio deitados, “serão discriminadas as áreas que se constituírem em passagem comum para as vias públicas ou para as unidades entre si”, a se supor a existência de vias internas que poderão constituir um verdadeiro sistema viário autônomo.

 

Não haveria como, seja em face da falta de restrição legal ou seja em face da complexidade que o sistema viário interno poderá assumir, concluir-se pela existência de qualquer restrição a que os condomínios deitados constituídos nos termos da Lei no 4.591/1964 venham a ser implantados em glebas ou lotes de qualquer tamanho.

 

É bem verdade que inúmeros municípios trazem restrições ao tamanho de glebas ou lotes em que tais condomínios possam vir a ser constituídos – o que leva a crer, inclusive, que os Municípios são os entes mais habilitados a legislar sobre a matéria. No Município de São Paulo, por exemplo, instituiu-se o tamanho máximo de quinze mil metros quadrados para os lotes em que poderão ser constituídos condomínios deitados[56]. Campinas, no Estado de São Paulo, prevê três limites, vinte e cinco, trinta e quarenta mil metros quadrados[57], fixados de acordo com a metragem dos lotes que comporão o empreendimento.

 

Muito embora se admita que, ao menos sob a égide da legislação federal, os condomínios deitados possam ser constituídos em glebas ou lotes de quaisquer tamanhos, não se pode perder de vista que correspondem, também, a um modelo de uso e ocupação do solo. Nesse sentido, não podemos deixar de concluir que a constituição dos condomínios deitados deve atenção àqueles princípios que norteiam o direito urbanístico, dentre os quais o princípio da função social da propriedade e das cidades. Logo, nessas hipóteses, os condomínios deitados, mormente aqueles constituídos em áreas de grande extensão, devem atenção àquelas diretrizes genéricas estabelecidas pela Lei de Loteamentos[58].

 

De fato, ainda que constituídos por áreas exclusivamente privadas, a implantação de condomínios deitados de tal porte deve estar condicionada ao atendimento das determinações da Lei de Loteamentos, como a constituição de infra-estrutura básica prevista no art. 6o e aqueles requisitos do art. 4o, dentre os quais, inclusive, áreas destinadas à implantação de equipamentos públicos.

 

Do mesmo modo, sugerimos que o projeto do condomínio deitado deverá observar o procedimento estabelecido pela Lei de Loteamentos quanto ao pedido para obtenção das diretrizes, das licenças necessárias e, ainda, quanto ao efetivo registro do empreendimento junto ao ofício de registro de imóveis. Com isso, coaduna-se o interesse exclusivamente privado dos empreendedores com o interesse público, facultando-se ao Poder Público Municipal a verificação, principalmente, do atendimento das funções essenciais da cidade, quais sejam, trabalho, circulação, lazer, moradia, qualidade de vida e proteção ao meio ambiente[59].

 

Vislumbra-se, diante do exposto neste item, a possibilidade de que os loteamentos fechados e os condomínios deitados encontrem respaldo no ordenamento jurídico.

 

Por um lado, as vias de circulação, áreas de lazer e aquelas destinadas à instalação de equipamentos públicos poderão ser objeto de permissão, autorização ou concessão ao particular, permitindo-se, assim, que os proprietários de lotes – ou mesmo uma associação por eles constituída – possam fechar a área do loteamento, com a instalação de guaritas, controle de acesso etc.

 

Alternativamente, poderão ser constituídos os chamados condomínios deitados, em que as vias de circulação, áreas de lazer e institucionais são exclusivamente privadas, sob regime condominial, sem que isso, contudo, represente a inobservância daqueles requisitos e diretrizes urbanísticas gerais estabelecidas pela Lei no 6.766/1979, durante o processo de aprovação do empreendimento junto às autoridades públicas competentes.

 

4.3.      Harmonização de Princípios Constitucionais:

 

Há, ainda, um último aspecto que merece atenção: a coexistência de diversos princípios constitucionais aplicáveis à discussão envolvendo os loteamentos fechados e os condomínios deitados. À toda evidência, o maior debate envolve os princípios da segurança e da propriedade privada, que devem co-existir com aqueles que norteiam o direito urbanístico, como a função social da propriedade e das cidades, com a proteção ao meio-ambiente e, ainda, com o direito de locomoção.

 

A interpretação de princípios constitucionais, na lição de Joaquim José Gomes Canotilho, deve estar balizada pelos princípios da máxima efetividade e da harmonização, dentre outros. Enquanto, pelo primeiro, deve-se atribuir ao princípio o sentido que lhe dê maior eficácia, pelo princípio da harmonização, é necessário que se evite o sacrifício total de um em relação ao outro. Em outras palavras, os princípios acima apontados devem coexistir, de modo a que nenhum deles seja sacrificado em sua totalidade[60].

 

Um dos principais instrumentos que auxiliarão o intérprete nesse exercício de “cedência recíproca” entre princípios constitucionais é o teste da razoabilidade. Como lembra Joaquim José Gomes Canotilho, “o teste de razoabilidade permitirá, por exemplo, descobrir o desvalor constitucional de alguns interesses pretensamente invocados como dignos de proteção e em conflito com outros[61]. Isso significa dizer que, diante de uma situação concreta, a premissa de que não se pode restringir em nenhuma hipótese o acesso a bens públicos pode perder espaço para outros princípios constitucionais, como a da segurança e mesmo o da proteção ao meio ambiente.

 

Como já tivemos oportunidade de expor acima, os princípios da função social da propriedade e das cidades não conflitam necessariamente com a implantação de empreendimentos na forma aqui proposta. Com efeito, considerando que os novos padrões de urbanização indicam a forma condominial como sendo a de maior aceitação e utilidade, não se pode negar que a sua regulamentação – evitando-se, pois, a ilegalidade – atende a tais princípios. O prestígio à propriedade privada e à utilização coletiva de espaços privados respeita, sobretudo, à realidade social e fática dos dias atuais, pouco importando, pois, haver ou não coincidência entre o interesse público e o particular no caso concreto.

 

Mais do que isso, a utilização pelo particular de bens públicos é autorizada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Em não havendo qualquer impedimento a que as cidades exerçam, na sua plenitude, as funções que lhe são essenciais, não há como se cogitar que haja qualquer ofensa ao princípio da função social das cidades e da propriedade.

 

A possibilidade de conflito entre o princípio da segurança e o da liberdade de locomoção só assume maior importância se tratarmos de loteamentos que venham a ser fechados mediante a outorga de concessão, autorização ou permissão de uso ou por meio da concessão do direito real de uso. Isso porque, se estivermos tratando de condomínios, constituídos nos termos da Lei no 4.591/1964 – ou mesmo à luz do Código Civil –, estarão em foco apenas espaços e, bem assim, direitos privados. Não haveria, portanto, qualquer infringência ao direito de locomoção.

 

No caso dos loteamentos fechados, contudo, o conflito entre tais princípios constitucionais residiria, justamente, no fato de que as vias de circulação, áreas de lazer e institucionais integram o domínio municipal e, com isso, em princípio, seriam insuscetíveis de terem seu acesso restringido. Note-se, entretanto, que além de não haver, como se viu acima, qualquer impedimento à utilização pelo particular de bens públicos, em grande parte dos casos não há um interesse expresso da comunidade lindeira ao empreendimento fechado que sejam seus muros derrubados.

 

Em outras palavras, não havendo qualquer prejuízo ao desenvolvimento da cidade – o que prestigia o princípio da função social da propriedade e das cidades, como visto –, deve prevalecer o princípio da segurança, em favor daqueles que desejam o fechamento do condomínio deitado. O teste de razoabilidade, nessa situação, indica que, face à conjugação dos fatores falta de segurança pública e inexistência de prejuízo ao desenvolvimento da cidade, deve prevalecer o princípio da segurança em detrimento do direito de locomoção. Luis Manuel Fonseca Pires conclui o seguinte a esse respeito:

 

Desta forma, a colisão dos princípios da segurança pública e da liberdade de locomoção, no caso concreto em que estudamos (na legitimidade dos loteamentos fechados, bolsões e vilas com acesso restrito aos moradores), não se resolve de chofre em favor do segundo, pois, não há uma vedação ‘a priori’ no uso privativo de bens públicos.

 

Ao inverso, este conflito em concreto denota que o valor que a início merece prestígio e por isso deve preponderar é o princípio da segurança pública, pois a disseminação da violência no país tem tomado proporções tonitruantes[62].

 

Ora, se o fechamento de loteamentos não constitui em si qualquer ilicitude, a restrição ao direito de locomoção só deveria ser coibida caso houvesse uma efetiva violação de outros interesses envolvidos, mormente o da função social das cidades e da propriedade.

 

Em termos práticos, se o fechamento de um loteamento impossibilita o crescimento de uma cidade, afeta o meio ambiente ou, ainda, traz prejuízos ao exercícios das funções essenciais da cidade, o direito à livre locomoção deve prevalecer. Entretanto, caso o fechamento do loteamento prestigie o princípio da segurança, sem prejuízo daqueles outros princípios já mencionados, não existe nenhuma razão objetiva para que o loteamento não venha a ser fechado.

 

Mesmo a questão relativa ao meio-ambiente, se analisada amiúde, dá outros contornos à questão dos loteamentos fechados. Floriano Azevedo Marques Neto, em artigo recentemente publicado, defende a tese de que a restrição de acesso a determinadas praias é medida que atende, antes, à proteção do meio ambiente. A falta de controle de tráfego de veículos e de pessoas, a falta de segurança e, ainda, de medidas que visem a efetiva preservação do meio ambiente servem de argumento para que se prestigie o fechamento de tais áreas, com a constituição de uma associação responsável por tais medidas, em detrimento do livre acesso de pessoas e veículos[63].

 

O que se quer dizer, pois, é que não se deve prestigiar apenas princípios como o da função social da propriedade e o do livre acesso aos bens públicos durante a discussão do tema, com a finalidade de justificar a proibição dos loteamentos fechados e dos condomínios deitados. A questão, certamente, passa pela análise de outros princípios, inclusive o da própria proteção ao meio ambiente, que ajudarão a vislumbrar, no caso concreto, outras respostas diferentes da mera proibição.

 

 

  1. CONCLUSÕES:

 

Ao término do presente trabalho, podemos apontar algumas conclusões, sem a pretensão, entretanto, de que o debate seja encerrado:

 

  1. Os padrões urbanísticos mudaram a partir de meados da década de 1970. De fato, não se pode mais compreender o desenvolvimento de uma cidade como uma atividade exclusivamente estatal, mas deve, também, ser levado em conta o interesse dos particulares no desenvolvimento das cidades e, bem assim, das novas formas de urbanismo. A legislação aplicável, i.e., a Lei de Loteamentos e a Lei de Condomínios, não atende, entretanto, aos novos padrões.

 

  1. Observa-se a existência de lacuna jurídica no que tange aos loteamentos fechados e aos condomínios deitados. Isso porque, não se pode supor que a Lei de Loteamentos, que data de 1979, e cujo processo legislativo e plano fático têm origem bem antes, poderiam prever os novos padrões de urbanização que, como visto, tiveram início a partir de meados da década de 1970.

 

  1. Não se admite o argumento baseado na norma geral exclusiva. A máxima aplicável ao direito público de que “o que não está permitido, está proibido” não leva em conta, no caso dos empreendimentos fechados, o fato de que a legislação pertinente não os previu. Logo, a questão dos loteamentos fechados e dos condomínios deitados deve ser analisada à luz da norma geral inclusiva e, bem assim, do recurso à analogia, buscando encontrar no ordenamento jurídico, em casos semelhantes, a regulação jurídica necessária.

 

  1. Os loteamentos fechados e os condomínios deitados, nesse sentido, encontram respaldo no ordenamento jurídico. Por um lado, as vias de circulação, áreas de lazer e aquelas destinadas à instalação de equipamentos públicos poderão ser objeto de permissão ou concessão ao particular, permitindo-se, assim, o fechamento da área em que tenha sido constituído o loteamento.

 

  1. Paralelamente, poderão ser constituídos os chamados condomínios deitados, em que as vias de circulação, áreas de lazer e institucionais são exclusivamente privadas, sob regime condominial. E, como se viu acima, não prosperam, seja pela falta de expressa previsão legislativa, seja em razão de dialogarem tais empreendimentos com o direito privado e não apenas com o direito público, as limitações impostas a tais empreendimentos, no sentido de que não podem ser constituídos apenas de lotes e, ainda, que apenas poderão ser implantados em áreas de pequena extensão.

 

  1. No caso dos condomínios deitados, muito embora consistam em empreendimentos fechados, face à sua importância como forma de urbanização, devem eles observância àqueles requisitos e diretrizes urbanísticas gerais estabelecidas pela Lei no 6.766/1979.

 

  1. A discussão envolvendo os loteamentos fechados e os condomínios deitados não deve ser travada apenas à luz de princípios como o da função social da propriedade e o do livre acesso aos bens públicos. Isso porque, o debate passa pela análise de outros princípios, também de raízes constitucionais, que ajudarão a vislumbrar, no caso concreto, outras respostas diferentes da mera proibição a tais empreendimentos.

 

 

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[1] A doutrina discente quanto ao nomem juris a que se deva dar aos chamados “loteamentos fechados”. No presente trabalho, adotar-se-á a expressão “loteamentos fechados”, para aqueles empreendimentos constituídos sob os ditames da Lei de Loteamentos, e a expressão “condomínios deitados”, para aqueles outros empreendimentos constituídos sob a forma condominial.

[2] Comentários ao Novo Código Civil, p. 371.

[3] Art. 2.045. Revogam-se a Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 – Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei no 556, de 25 de junho de 1850.

[4] Código Civil, p. 500.

[5] Condomínio e o Novo Código Civil, p. 100.

[6] Comentários ao Novo Código Civil, p. 374.

[7] Direito Urbanístico Brasileiro, p. 350-351.

[8] Nesse mesmo sentido: Diógenes Gasparini. Loteamento em Condomínio. O Estado de São Paulo de 25.04.1982, apud Toshio Mukai, Direito Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 138.

[9] Ibid., p. 352.

[10] Ibid., mesma página.

[11] Ibid., p. 351.

[12] Direito Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 138.

[13] Ibid., mesma página.

[14] Disciplina Urbanística da Propriedade, p. 108-111.

[15] Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 856-864; Maria Sylvia Zanella di Pietro. Direito Administrativo, p. 561-568; Diógenes Gasparini, Direito Administrativo, p. 688-693; e Lúcia Valle Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, p. 560-564.

[16] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal, p. 229.

[17] Instituições de Direito Civil, p. 502.

[18] Condomínio Fechado, p. 8.

[19] Ibid., mesma página.

[20] Loteamento Fechado, p. 101.

[21] Direito Municipal, p. 542.

[22] Loteamento Fechado e Loteamento Horizontal, p. 115.

[23] Fazemos referência no que tange ao tema à obra Notas Sobre Urbanização Dispersa e Novas Formas de Tecido Urbano, de Nestor Goulart Reis. Naturalmente, face ao enxuto caráter do presente trabalho, não há como se esgotar toda a análise feita pelo professor a respeito da urbanização dispersa e das novas formas de tecido urbano. Adotam-se, como premissas, as noções de que a urbanização hoje, no Brasil, por inúmeras razões dispersou-se ao longo dos eixos rodoviários, e, ainda, que os espaços de uso coletivo, também em razão da urbanização dispersa, correspondem cada vez mais a espaços privados.

[24] Notas sobre Urbanização Dispersa, p. 68.

[25] Ibid., p. 168.

[26] Nestor Goulart Reis, em sua obra já citada, aponta dois fatos relativos à vida dos paulistanos como sendo causas para a privatização dos espaços coletivos: o primeiro, afeto ao lazer; a disseminação da televisão, que deslocou o lazer quotidiano das ruas e praças para as salas de cada uma das residências, ao que se agrega o fato de o descanso semanal passar a abarcar também os sábados, o que permitiu a aquisição de chácaras de recreio e outras formas de lazer distantes dos centros urbanos; e, o segundo, consistente no crescente uso de veículos particulares, o que afastou seus proprietários das ruas e espaços públicos. (Notas sobre Urbanização Dispersa, p. 70-71).

[27] Ibid., p. 169.

[28] Ibid., mesma página.

[29] Ibid., p. 61.

[30] Ibid., mesma página.

[31] A Possibilidade de Restrição de Acesso, p. 280.

[32] Ainda tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei no 3.057, de 2000, que alterará a legislação relativa ao parcelamento do solo para fins urbanos.

[33] As Lacunas no Direito, p. 115.

[34] Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 139.

[35] Ibid., p. 137.

[36] Curso de Direito Administrativo, p. 443.

[37] Loteamentos Urbanos, p. 93.

[38] Constitucionalidade de Lei Municipal, passim.

[39] A Possibilidade de Restrição, p. 294-295.

[40] Loteamento Fechado e Loteamento Horizontal, p. 85.

[41] Curso de Direito Administrativo, p. 408.

[42] Ibid., p. 860.

[43] Ibid., mesma página.

[44] Loteamento Fechado e Condomínio Deitado, p. 7.

[45] Lúcia Valle Figueiredo. Disciplina Urbanística da Propriedade, p. 108.

[46] Ibid., p. 106.

[47] Curso de Direito Administrativo, 846. Nesse mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles, para quem “é evidente que uma praça ou um edifício público, qualquer deles, poderá ser vendido, doado ou permutado desde que desafetado previamente de sua destinação originária. Essa desafetação se faz por lei especial, que traspassa o bem de uma categoria inalienável (de uso do povo ou de uso especial) para outra alienável (dominicais ou patrimoniais disponíveis)”, in Curso de Direito Administrativo, p. 439.

[48] A Possibilidade de Restrição, p. 293.

[49] Loteamento Fechado e Loteamento Horizontal, p. 119.

[50] Ibid., p. 120.

[51] Condomínio Fechado, p. 9.

[52] Loteamento Fechado e Loteamento Horizontal, p. 122.

[53] Direito Urbanístico Brasileiro, p. 352.

[54] Loteamento Fechado e Loteamento Horizontal, p. 125.

[55] Condomínio Fechado, p. 8.

[56] Lei no 11.650, de 12.07.1994.

[57] Lei nº 6.038, de 28.12.1988.

[58] Lucia Valle Figueiredo, quanto a esse ponto, faz referência ao que seria uma “coesão dinâmica entre regras de direito público e privado” a demonstrar que mesmo os condomínios deitados deveriam observância às diretrizes genéricas da Lei de Loteamentos (in Disciplina Urbanística da Propriedade, p. 110).

[59] Cf. a esse respeito, Daniela Campos Libório di Sarno, Elementos de Direito Urbanístico.

[60] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1223-1228.

[61] Ibid., p. 1239.

[62] Loteamentos Urbanos, p. 38.

[63] A Possibilidade de Restrição, passim.



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Pedro Marino Bicudo

Data de Publicação

01/05/2007