Da competência exclusiva da União ao potencial de conflito federativo
A Lei 15.042/24 instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que, inspirado no modelo cap-and-trade adotado em outros países,[1] se propõe a ser um “ambiente regulado submetido ao regime de limitação das emissões de GEE [“cap”] e de comercialização de ativos [“trade”] representativos de emissão, redução de emissão ou remoção de GEE no país”.[2] Logo, o estabelecimento de limites de emissões de GEE é uma das principais engrenagens do SBCE.
Mas o SBCE não pretende limitar toda e qualquer emissão de GEE no Brasil. A Lei faz um recorte específico: apenas os operadores de instalações ou fontes[3] que emitam mais do que 25 mil tCO2e por ano[4] serão obrigados a enquadrar suas emissões, nos termos a serem estabelecidos no Plano Nacional de Alocação (PNA). E há uma ressalva importante: “a produção primária agropecuária, bem como os bens, as benfeitorias e a infraestrutura no interior de imóveis rurais a ela diretamente associados, não são considerados atividades, fontes ou instalações reguladas e não se submetem a obrigações impostas no âmbito do SBCE”.[5]
Assim, observados o referido patamar anual de emissões e a exceção aplicável à agropecuária, o PNA atribuirá aos operadores “metas de redução de emissões de GEE definidas de acordo com o teto máximo de emissões”, a serem observadas durante um período a ser definido naquele Plano — o “período de compromisso”.[6] Nestes termos, o PNA estabelecerá ao menos dois balizamentos para as emissões de GEE, um com uma escala individual e outro, coletiva:
- Compromissos ambientais (ou metas) por operador: No período de compromisso, as emissões de GEE por instalação ou fonte regulada deverão se limitar à quantidade de Cotas Brasileira de Emissões (CBE)[7] que forem outorgadas ao seu operador pelo órgão gestor do SBCE, bem como ao percentual máximo de Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE)[8] admitidos pelo PNA para o atendimento do dever de “conciliação periódica de compromissos”, que, por sua vez, consiste no “cumprimento dos compromissos ambientais definidos por operador no Plano Nacional de Alocação, por meio da titularidade de ativos integrantes do SBCE [CBE e CRVE] em quantidade igual às emissões líquidas incorridas”.[9]
- Limite (ou teto) de emissão de GEE para o conjunto de operadores: De acordo com o art. 11 da Lei 15.042/24, “a CBE será distribuída pelo órgão gestor do SBCE ao operador sujeito ao dever de conciliação periódica de obrigações, considerado o limite máximo de emissões definido no âmbito do SBCE” — i.e., o “limite quantitativo, expresso em toneladas de dióxido de carbono equivalente (tCO2e), definido por período de compromisso, aplicável ao SBCE como um todo, e que contribui para o cumprimento de objetivos de redução ou remoção de GEE, definidos na Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC)”,[10] instituída pela Lei 12.187/09.
Portanto, as metas e os limites de emissão de GEE estarão previstos no PNA — que será aprovado pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM),[11] a partir de proposta elaborada pelo órgão gestor,[12] considerando, conforme o caso, os subsídios e as recomendações do órgão consultivo do SBCE, o Comitê Técnico Consultivo Permanente.[13]
Assim, o órgão gestor do SBCE desempenhará um papel central no estabelecimento de metas e limites de emissão de GEE a serem cumpridos pelos operadores regulados. Mais do que isso, como instância executora do SBCE, o órgão gestor exercerá funções de “caráter normativo, regulatório, executivo, sancionatório e recursal”.[14]
Segundo o art. 8º da Lei 15.042/24, competirá ao órgão gestor, por exemplo, (a) “estabelecer os requisitos e os procedimentos para conciliação periódica de obrigações” (inc. VII); (b) “implementar o Plano Nacional de Alocação em cada período de compromisso” (inc. IX); (c) “criar, manter e gerir o Registro Central do SBCE” (inc. X); (d) “emitir as CBEs” (inc. XI); (e) “receber os relatos e realizar a conciliação periódica de obrigações” (inc. XV); (f) “apurar infrações e aplicar sanções decorrentes do descumprimento das regras aplicáveis ao SBCE, garantido o direito à ampla defesa e ao contraditório, bem como ao duplo grau recursal” (inc. XXII); e (g) “estabelecer as regras e os parâmetros para a definição dos limites de CRVEs a serem aceitos para fins do processo de conciliação periódica de obrigações” (inc. XXIV).
Tem-se, pois, uma concentração relevante de poderes em um único órgão, que ainda será criado e regulamentado.[15]
Enquanto muito se discute — e é preciso que se discuta — sobre os mecanismos internos de governança, transparência e tomada de decisões do órgão gestor, não se pode ignorar a necessidade de analisá-lo sob uma perspectiva mais ampla e de disciplinar sua relação sistêmica com outros órgãos, sobretudo aqueles integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), criado pela Lei 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA).
Por muitos anos, o exercício do poder de polícia pelos órgãos do Sisnama, nos termos do art. 23, VI e VII, da Constituição Federal, gerou sobreposições, conflitos e judicialização. Este mal foi mitigado, em alguma medida, com a edição da Lei Complementar – LC 140/11, que dispõe sobre a cooperação entre os entes federativos, no exercício da competência comum em matéria ambiental.
Entre seus objetivos, destacam-se os seguintes: (a) “harmonizar as políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os entes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente” (art. 3º, III); e (b) “garantir a uniformidade da política ambiental para todo o país, respeitadas as peculiaridades regionais e locais” (art. 3º, IV).
Reconheceu-se, assim, que o compartilhamento da competência para a proteção do meio ambiente e o combate à poluição não impede a divisão entre os entes federativos de ações administrativas específicas, visando a uma atuação administrativa eficiente, que reflita a preponderância dos interesses envolvidos.
À União, por exemplo, foram atribuídas algumas ações administrativas exclusivas, assegurando-se a uniformidade de seu tratamento em todo o território nacional, tais como: (a) “elaborar a relação de espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção e de espécies sobre-explotadas no território nacional” (art. 7º, XVI); (b) “controlar a introdução no país de espécies exóticas potencialmente invasoras que possam ameaçar os ecossistemas, habitats e espécies nativas” (art. 7º, XVII); e (c) “gerir o patrimônio genético e o acesso ao conhecimento tradicional associado, respeitadas as atribuições setoriais” (art. 7º, XXIII).
A Lei 15.042/24, ao cuidar do estabelecimento de limites de emissão de GEE aos setores regulados, conferiu à União “competência exclusiva” para o exercício desta ação, vedando a “dupla regulação institucional” sobre emissões de GEE por atividades, por instalações ou por fontes reguladas.
Segundo o art. 22 da lei, “respeitadas as competências federativas previstas na Lei Complementar 140, de 8 de dezembro de 2011, é competência exclusiva da União o estabelecimento de limites de emissão aos setores regulados, de acordo com o Plano Nacional de Alocação e com os parâmetros definidos nesta lei, vedadas a dupla regulação institucional e qualquer tributação sobre emissões de GEE por atividades, por instalações ou por fontes reguladas pelo SBCE”.
A pretensão de se centralizar na União a competência para a fixação de limites de emissão de GEE no âmbito do SBCE tem sua lógica, considerando, entre outros aspectos, que é desejável, para a previsibilidade e segurança jurídica deste Sistema, que as metas dos operadores e o teto global estabelecidos no PNA — sendo um plano de abrangência nacional — recebam um tratamento uniforme em todo o país.
Ao mesmo tempo, não se pode negligenciar eventual cenário em que órgãos do Sisnama queiram avocar para si, com base em normas estaduais sobre a matéria, uma atuação concomitante ou subsidiária à do órgão gestor do SBCE.
É crucial, portanto, que, nas discussões em curso sobre a regulamentação do SBCE e a criação do órgão gestor, não nos limitemos a esmiuçar cada artigo da Lei 15.042/24 e detalhar o regimento interno da instância executora do novo sistema. É preciso que também se tenha um olhar amplo sobre a questão, que contextualize o SBCE no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo à luz da legislação ambiental e climática, e enderece com equilíbrio possíveis conflitos federativos, sistêmicos e institucionais.
[1] Cite-se, por exemplo, o sistema europeu “EU Emissions Trading System” (https://climate.ec.europa.eu/eu-action/eu-emissions-trading-system-eu-ets_en).
[2] Art. 3º, caput, da Lei 15.042/24.
[3] De acordo com a Lei 15.042/24, (i) “operador” é o “agente regulado no SBCE, pessoa física ou jurídica, brasileira ou constituída de acordo com as leis do país, detentora direta, ou por meio de algum instrumento jurídico, de instalação ou fonte associada a alguma atividade emissora de GEE”; (ii) “instalação” é “qualquer propriedade física ou área onde se localiza uma ou mais fontes estacionárias associadas a alguma atividade emissora de GEE” (art. 2º, XV); e (iii) “fonte” é o “processo ou atividade, móvel ou estacionário, de propriedade direta ou cedido por meio de instrumento jurídico ao operador, cuja operação libere na atmosfera GEE, aerossol ou precursor de GEE” (art. 2º, XII).
[4] Art. 30, II, da Lei 15.042/24. Este patamar poderá ser majorado por ato específico do órgão gestor do SBCE, nos termos do art. 30, § 1º, da Lei 15.042/24.
[5] Art. 1º, § 2º, da Lei 15.042/24.
[6] Art. 2º, XXII, da Lei 15.042/24.
[7] Nos termos do art. 2º, VI, da Lei 15.042/24, “Cota Brasileira de Emissões (CBE)” é o “ativo fungível, transacionável, representativo do direito de emissão de 1 tCO2e (uma tonelada de dióxido de carbono equivalente), outorgado pelo órgão gestor do SBCE, de forma gratuita ou onerosa, para as instalações ou as fontes reguladas”.
[8] O art. 2º, III, da Lei 15.042/24, define “Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE)” como o “ativo fungível, transacionável, representativo da efetiva redução de emissões ou remoção de GEE de 1 tCO2e (uma tonelada de dióxido de carbono equivalente), seguindo metodologia credenciada e com registro efetuado no âmbito do SBCE, nos termos de ato específico do órgão gestor do SBCE”.
[9] Arts. 2º, V, e 34 da Lei 15.042/24.
[10] Art. 2º, XVI, da Lei 15.042/24.
[11] Art. 7º, II, da Lei 15.042/24.
[12] Art. 8º, VIII, da Lei 15.042/24.
[13] Art. 9º, II, da Lei 15.042/24.
[14] Art. 8º, caput, da Lei 15.042/24.
[15] Seu regulamento deverá tomar como referência o Capítulo I da Lei 13.848/19 (sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras) e dispor sobre os mecanismos de governança, de transparência e de tomada de decisões (cf. art. 8º, § 3º, da Lei 15.042/24).